não há nos versos teorias da salvação
e nem os poetas andam aqui a complicar-nos a vida
verso a verso passamos todos, um dia a menos
ou a mais, depende da contabilidade existencial.
um dia svestimo-nos de palhaço triste, outros de senhor contente que lava o carro
porque é sábado de manhã e o perfume do detergente promete
muito mais do que pode ser. oh, terras da abundância ao virar da esquina
e mais duas octanas e meia.
tantos cigarros fumados e os dois pulmões inteirinhos
parecem dois barcos, dois enormes petroleiros no meio do corpo,
será isso? os pulmões são o meio do corpo? podia ser o coração
mas isso era problemático, ficávamos logo a cair para o lirismo.
nada disso, não quero dizer como pensar em ti me alarga o corpo
fico tão grande que me perco e quanto maior, mais só
então quero-me ao largo, pequeno e miúdo, com este cigarrinho de muleta.
é disso que gosto nos cigarros, amparam-me os lábios, sustentam-nos
se não fosse assim acho que já tinha deixado cair os beiços
sim, beiços, palavra de recorte neoclássico, sim, sim, lê o gonzaga a carpir
ele também inventou que tinha um coração
maior que o mundo e tramou-se.
os poetas andam todos malucos, verso a verso mais pequenos
os dedos enfiados no hemistíquio, acham que se safam assim
ah,insanos
foram achando que à falta de reza, viriam os versos.
passo de carro, comboio, avião, a cada dia passo e apresso a morte
hei-de passar tão rápido que será como se tivesse sempre dormido
mas vamos mudar de estrofe:
um dia faço um cometa e fujo. sim, sim, a luz em um país perdido
verso a verso me visto e me vejo sempre nu;
verso a verso faço zapping mas a vida não muda.
adeus, adeus, demorado adeus, oh artérias minhas
adeus, adeus, solidão das quartas-feiras. um dia faço um cometa.
nada disto está certo
que é como quem diz
isto tudo está errado
sempre a mesma coisa
dor de barriga
dor de corno
oh, minha nossa senhora das dores
agora e na hora da nossa morte para quê tantos jornais?
tantas religiões para este punhado de deuses adormecidos?
tantos reis na terra e só dois palmos para morrer nela.
sonho que sou o cavaleiro errante
tantas moças por casar e tu mar, tanto mar para quê se ainda durmo?
maragosto, maramado
o que é bom é que no fim do mar começa o outro lado do mundo
o mundo está sempre a começar, é o problema de ser redondo.
oh, pedro nunes, pedro nunes
também a morte é assim, o outro lado deste sono.
vamos descer outra vez de estrofe:
as pessoas gostam muito de enfeites
deve ser por isso que a uns lhes dá para os versos.
a sorte é que as pessoas também gostam
de enfeites e saídas ao domingo.
tanta fé que aqui havia, fé e tremoço,
depois deu-lhes para o paganismo dos centros comerciais
e sobraram estes werther perdidos no tempo
a nortada quase que os leva, não devia ser mau, sair assim
voando, levado pela nortada
espinho ao largo, corpo ao largo, ao largo oh.
não, nada disso.
antes um cometa, um dia faço um cometa e fujo.
adeus, adeus ó tgv
adeus, adeus palmeiras da beira-mar
adeus laranjeira, tu, só tu,
adeus números primos , catpillers, escala de richter
adeus, oh.