fredag, juli 29

passepartout

m. era uma dessas pessoas que atravessa uma semana inteira e pode conversar apenas com o dono da frutaria ou com o carteiro, isto se viveno rés-do-chão, onde pode chegar à fala perguntando por carta extraviada, encomenda demorada e outras vigências postais.
sem senhoras vizinhas com quem se abotoasse por ocasiões, nem sobrinhos sócio- gerentes , ou filhos quasequase doutores, que não os tivera porque também não casara, isto eram outros tempos, um pai severo por perto, brandos costumes à força de tanto servir e ficara assim, só.

a única vez ao ano que abalava da pequena casa trajada de sardinheiras por todos os lados era no natal. ela dizia ao homem da frutaria: não me guarde kiwis esta semana que vou à terra. à rosa amélia, sabe? sim, a rosa amélia, vou passar o natal à terra com a rosa amélia, sabe?ele sabia. era uma prima distante, quase tão no fim da linha que quase não era prima.

mas coubera-lhes um destino mais ou menos parecido, ou pelo menos assim pensava m., pelo que se juntavam em solidão partilhada, uma vez ao ano. se rosa amélia tina casado, não lhe valera de muito, estava viúva. tinha tido filhos , mas com todos tinha entrado em desavença. irmãos eram uns só de pai, outros só de mãe, e detestavam-se todos os cinco entre si com tal minúcia que morava cada um em seu continente.

invariavelmente, todos os anos, m. trazia consigo um belo porta-retratos que lhe oferecia rosa amélia. eram todos muito graves, retorcidos, saídos de prestimosas ourivesarias minhotas.
m. sorria, mais resignada que agradecida, e voltava de autocarro a cismar invariavelmente naquilo.
não imaginava que fosse maldade. vivia tão só que as questões morais se tinham diluído tanto que quase não existiam. a convivência, como a educação, diria kant, confere ao homem mais humanidade do que natureza.

um porta retratos triunfal, de prata, pesado, altivo. e quem poria lá dentro?quem?no primeiro ano resolveu a questão com a mãe. no segundo, por medo, com o pai . no terceiro, por falta de opções com rosa amélia. ao quarto estacou sem saber mais o que fazer.

desse ano em diante, passou a amontoar os porta-retratos num móvel, vazios e destituídos. agora tinha mais um entre mãos para acrescentar a essa legião de porta- retratos, passepartout, como dizia rosa amélia que tinha tido uma preceptora e frisava os cabelos quando ainda era uma mocinha casadoira.

um dia, passou por uma loja de decoração. havia legiões de molduras, pequenas, a tender para o faraónico, algumas discretas, outras de materiais muito futuristas, outras ainda com um ar a imitar o solene daquelas que rosa amélia lhe oferecia.

m. deliciou-se com aquilo: em cada moldura um retrato belo. mulheres louras, altivas,noutras senhoras com ar muito distinto, apalaçado. havia também crianças coradas, com ar estudadamente sereno. homens eram menos, mas que bem os que ali estavam, todos muito respeitáveis, domesticados.
reconheceu alguns dos rostos de revistas que via quando passava pelo cabeleireiro.

nesse mesmo dia,antes de ir para casa, passou pelo quiosque.
passou a noite a recortar rostos que viravam irmãs, filhas, tias e até primas que viviam longe. recortou também um marido bem apessoado e um pai de ar benévolo. compôs uma famíla em molduras como quem faz um presépio.
desde esse dia, se por acaso se sentia mais só, saía e comprava mais uma moldura, já não podia esperar até ao natal.

1 Comments:

Blogger Lídia Aparício apalavrou que ...

estava a ver este texto num certo espaço, só que quando vejo Kant por uma linha, já não pode ser ,ihih. está giro.

søndag, juli 31, 2005 6:58:00 p.m.  

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